Por: Janderson Torres

Vocês devem, a maioria de vocês, estar familiarizados com o mérito geral segundo o qual os nossos amigos calvinistas mais antigos lidam com esse texto. “Todos os homens”. Dizem eles, isto é, “alguns homens”: como se o Espírito Santo não pudesse ter dito “alguns homens” se ele quisesse dizer alguns homens. “Todos os homens”, dizem eles, isto é, “alguns de todos os tipos de homens”: como se o Senhor não pudesse ter dito “todos os tipos de homens” se ele quisesse ter dito isso. O Espírito Santo, através do apóstolo, escreveu “todos os homens”, e inquestionavelmente ele quis dizer todos os homens. Eu sei como me livrar da força do “todos” de acordo com esse método crítico que há algum tempo atrás foi muito coerente, mas eu não sei como ele pode ser aplicado aqui com a devida consideração à verdade. Eu estava lendo agora mesmo a exposição de um doutor muito capaz que explica o texto de modo a minimizá-lo; ele aplica pólvora gramatical a ele, e o explode por meio  de sua exposição. Eu pensei, quando li sua exposição, que teria sido um ótimo comentário sobre o texto se ele dissesse: “Que não deseja que todos os homens sejam salvos, nem venham ao conhecimento da verdade”. [...] Meu Amor à coerência com as minhas próprias opiniões doutrinárias não é grande o suficiente para me permitir alterar intencionalmente um único texto da Escritura. Tenho grande respeito pela ortodoxia, mas a minha reverência pela inspiração é muito maior. Eu preferiria cem vezes parecer incoerente comigo mesmo a ser incoerente com a Palavra de Deus.


SPURGEON, Charles. Spurgeon’s Sermons Volume 26: 1880. Grand Rapids, Christian Classics Ethereal Library, 2002, pp. 48-49


Por: Janderson Torres



Recentemente veio a tona mais uma série de erros propagados pelos maiores expoentes do meio reformado brasileiro. Algumas das frases mais criticadas foram:

Dr. Augustus Nicodemus: "...Deus estabelece e ordena o pecado, mas a culpa é do homem."

Dr. Héber Carlos de Campos: "...No céu, Jesus sente fome, sede e sono." 


Dr. Leandro Lima: "...Provar o dom celestial é tomar a santa ceia."

Marcos Granconato: "...O Filho não conhece plenamente a mente do Pai."


Não pretendo neste texto refutar nenhuma destas afirmações, por não ser este o motivo deste post. A intenção real deste texto é refletir sobre a reação dos reformados, ou melhor, a falta de reação, em meio a tais erros graves. Lembro-me que recentemente, o Pr. Lucio Barreto Junior, mais conhecido como Pr. Lucinho lançou um vídeo onde desafiava as pessoas a fazer uma “loucura”. Esta tal “loucura” se dava em fazer uma encenação com um de seus amigos em um metro ou ônibus. Isso deu o maior fuzuê. Em pouco tempo, a timeline do Facebook se encheu de postagens repudiando essa atitude do Pr. Lucinho. E isso se espalhou em todas as redes sociais. Fizeram vídeos no youtube, gravaram áudios, enfim, gritaram pro mundo inteiro ouvir: O Pastor Lucinho é um herege! E essa iniciativa de denunciar essa atitude de Lucinho partiu em boa medida do meio reformado. No momento achei louvável essa atitude. Pensei que ainda existiam aqueles que não abandonaram os princípios bíblicos do evangelismo e denunciavam o erro, seja de quem for. Pois também acredito que o Pr. Lucinho pisou feio na bola, falou bobagem, e não tinha o que defender.


Mas quando eu começava a olhar o movimento reformado com um olhar mais de admiração, me vem esse episódio com os erros reformados. Sinceramente, esperei dos sites, blogs, canais de youtube, páginas de Facebook do meio reformado a mesma veemência em combater estes terríveis erros. Pra fazer justiça, o blog Bereianos¹ fez uma postagem se posicionando contra a interpretação do Pr. Marcos Granconato. Mas esse silêncio evidenciou a real intenção da maioria dos reformados: Engajar recrutas para o quartel reformado, expondo o erro alheio e colocando para debaixo do tapete os seus próprios.


Esse episódio serviu para evidenciar a hipocrisia reformada, que no afã de mostrar a imponência de sua teologia frente às demais, se esquecem de primeiro remendar os buracos causados pelos seus maiores representantes no Brasil. Lembramos as palavras do nosso mestre Jesus: "Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho, e então cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão." (Mateus 7:4,5). Esse texto se encaixa perfeitamente com esse episódio.


Isso me preocupa bastante, e gera muito pesar em meu coração, pois saber desta verdade a respeitos dos reformados me causa muita tristeza, porque tenho uma estima elevada e uma admiração considerável pelos tais, apesar de discordar em boa medida de sua teologia. Falo isso com muito amor pelos irmãos reformados, para que urgentemente se posicionem contra esses erros e expulsem para fora de seu arraial toda e qualquer heresia, seja ela proferida por quem for, do mais renomado e conhecido ao menos famoso.



1 https://bereianos.blogspot.com.br/2016/06/a-perigosa-interpretacao-de-mateus-2436.html, visitado em 07/07/2016, às 16:57h.






Por: Carlos Augusto Vailatti




O presente artigo tem o objetivo de apresentar de forma sucinta as três principais interpretações tradicionalmente dadas ao texto bíblico de Mateus 11:20-24, passagem esta que aborda o juízo de Jesus pronunciado contra as três cidades impenitentes judias de Corazim, Betsaida e Cafarnaum. Afinal, de que trata esse texto bíblico? Da presciência de Jesus da fé das cidades gentílicas de Tiro, Sidom e Sodoma, que, não obstante, não lhes proporcionou nenhuma salvação, ou do emprego de meras figuras de linguagem? Buscaremos responder a estas perguntas ao longo desse breve estudo. Porém, a fim de ambientarmos o leitor no assunto, convém citarmos antes o texto bíblico em questão:


20 Então Jesus começou a denunciar as cidades em que havia sido realizada a maioria dos seus milagres, porque não se arrependeram. 21 “Ai de você, Corazim! Ai de você, Betsaida! Porque se os milagres que foram realizados entre vocês tivessem sido realizados em Tiro e Sidom, há muito tempo elas se teriam arrependido, vestindo roupas de saco e cobrindo-se de cinzas. 22 Mas eu afirmo que no dia do juízo haverá menor rigor para Tiro e Sidom do que para vocês. 23 E você, Cafarnaum, será elevada até ao céu? Não, você descerá até o Hades! Se os milagres que em você foram realizados tivessem sido realizados em Sodoma, ela teria permanecido até hoje. 24 Mas eu afirmo que no dia do juízo haverá menor rigor para Sodoma do que para você”. (Mateus 11:20-24 – NVI).


Essa narrativa mateana acerca das assim chamadas “cidades impenitentes” – também encontrada no texto paralelo de Lucas 10:13-15 – nos apresenta o registro de um dos episódios mais intrigantes e disputados de todo o Novo Testamento. De modo geral, pelo menos três interpretações distintas têm sido dadas a essa passagem bíblica no intuito de elucidar o seu real significado. Eis as interpretações: (1) Conhecimento Médio, (2) Ironia e (3) Hipérbole. Analisaremos, a seguir, a cada uma delas, e, ao término desse breve artigo, buscaremos chegar a um veredicto sobre qual parece ser a interpretação provavelmente mais adequada. Comecemos pelo conhecimento médio.


(1) Mateus 11:20-24: Um Caso de “Conhecimento Médio”


Em termos filosóficos, podemos definir “conhecimento médio” ou “conhecimento contingente” da seguinte maneira:


[Deus] não somente conhece o que qualquer indivíduo ou grupo fez, está fazendo ou fará, mas Ele também conhece o que eles teriam feito sob diferentes circunstâncias; e Ele leva este conhecimento em consideração no juízo final.i


Em outras palavras, o conhecimento médio é aquele aspecto da onisciência divina por meio do qual Deus possui conhecimento tanto dos acontecimentos reaisdo passado, presente e futuro, quanto dos acontecimentos contingentes, isto é, daquilo que teria ocorrido mediante condições distintas.


Segundo Ferreira e Myatt, “em Mateus 11.23, Jesus disse que se Sodoma tivesse visto os milagres feitos em Cafarnaum, ela não teria sido destruída, insinuando que ela se arrependeria dos seus pecados” e, portanto, esses autores concluem que esse texto bíblico estaria apresentando “um exemplo claro do chamado conhecimento médio da parte de Deus”.ii Mais adiante, ao discorrerem sobre a doutrina da eleição, Ferreira e Myatt tecem uma crítica à perspectiva arminiana da eleição condicional, isto é, a crença de que Deus elege as pessoas para a salvação com base na fé prevista. Tal crítica é fundamentada em Mt 11:20-24:


[...] Deus tem conhecimento de todas as escolhas de todas as pessoas em todos os mundos possíveis, e não apenas no mundo que existe. Notamos a declaração de Jesus, de que se tivessem sido feitos os milagres em Sodoma e Tiro que foram feitos em Cafarnaum e Betsaida, o povo daquelas cidades teria se arrependido. Evidentemente, Deus, por sua presciência e conhecimento de tudo, sabia que essas pessoas receberiam a salvação se lhes tivesse sido oferecida (Mt 11.20-24). Mas por que, então, a salvação não lhes foi oferecida? Por que Deus não enviou ninguém para pregar e fazer os milagres necessários para conseguir a salvação deste povo, se é verdade que Deus dá tal oportunidade a todos que ele sabe que o receberiam? Parece que este exemplo não se encaixa com a interpretação arminiana da eleição.iii


As objeções de Ferreira e Myatt são fortes e, portanto, não devem ser ignoradas. Entretanto, antes de examiná-las, devemos mencionar também a opinião de Granconato sobre o assunto, visto que este autor compartilha pensamento semelhante sobre a interpretação de Mt 11:20-24. Granconato, de forma bastante pretensiosa, declara:


Finalmente, para demolir de vez a doutrina [arminiana] de que Deus elege quando antevê a fé, o Novo Testamento apresenta pelo menos uma passagem em que Jesus dá indícios de que Deus age até mesmo de modo oposto, ou seja, ele prevê a fé e ainda assim não salva. O texto que aponta para isso é Mateus 11.21-24.iv


Em seguida, dando prosseguimento ao seu projeto de “demolição” da doutrina arminiana da eleição condicional, Granconato argumenta:


[...] ele [Jesus] afirmou que os habitantes de Tiro, Sidom e Sodoma se arrependeriam caso vissem e ouvissem o que aquelas cidades rebeldes da Galileia testemunharam diante do ministério messiânico. Porém, mesmo antevendo-lhes a fé e o imediato quebrantamento, Jesus jamais manifestou àquelas cidades a mesma carga de poder e glória que manifestou a Corazim, Betsaida e Cafarnaum e sequer lhes dirigiu um convite à salvação. Isso mostra de forma cabal que a eleição não depende da fé prevista.v


Bem, depois de ouvirmos todos esses argumentos, algumas considerações merecem ser feitas.


(1) Embora concordemos com Ferreira e Myatt quanto ao fato de Deus possuir aquilo que é chamado de “conhecimento médio”, contudo, isso não significa que tal assunto deva necessariamente ser pressuposto em Mt 11:20-24. Aliás, como teremos a oportunidade de ver posteriormente, há boas razões para não adotarmos tal ponto de vista aqui. Desse modo, dizer que Jesus “prevê a fé e ainda assim não salva” é uma afirmação que não pode ser inferida claramente da perícope bíblica mencionada, por motivos que se tornarão claros ao longo do presente artigo.


(2) Não é verdade que “a salvação não foi oferecida” e que Jesus “sequer dirigiu um convite à salvação” aos habitantes de Tiro e Sidom, assim como não é correto dizer também que milagres não foram realizados nessas localidades. O testemunho do Novo Testamento parece apontar para outra direção. Lemos, por exemplo, nos Evangelhos, que Jesus “retirou-se para os lados de Tiro e Sidom”, onde efetuou o exorcismo na filha de uma mulher cananeia/siro-fenícia (cf. Mt 15:21-28 // Mc 7:24-30). Além disso, Marcos registra que durante o ministério itinerante de Jesus, “dos arredores de Tiro e de Sidom uma grande multidão, sabendo quantas coisas Jesus fazia, veio ter com ele” (Mc 3:8). No contexto imediato dessa passagem, é dito que curas e exorcismos acompanharam o encontro de Jesus com aquelas pessoas (cf. Mc 3:10-11). Lucas também relata em seu Evangelho que em uma determinada ocasião, Jesus estava em uma planície “onde se encontravam muitos discípulos seus e grande multidão do povo, de toda a Judeia, de Jerusalém e do litoral de Tiro e de Sidom” (Lc 6:17). Tais indivíduos “vieram para o ouvirem e serem curados de suas enfermidades” (Lc 6:18). Finalmente, Lucas registra no livro de Atos que Paulo, ao chegar à região de Tiro durante uma de suas viagens missionárias, encontrou ali alguns discípulos (At 21:3-4). Some-se a isso ainda as seguintes constatações históricas. Segundo Comfort, igrejas foram estabelecidas nas cidades de Tiro e Sidom durante o I século d.C.vi e, de acordo com Hendriksen, “no segundo século d.C., se estabeleceu um bispado para o povo de Tiro e vizinhança”,vii o que só poderia ser explicado pelo fato de tais regiões terem recebido a mensagem do Evangelho. E Hinson, por sua vez, ao discorrer sobre o avanço do Cristianismo no IV Século d.C., nos fornece as seguintes informações:


O Cristianismo obteve uma mais forte possessão na Fenícia, particularmente em cidades costeiras com a população em grande parte grega. Onze bispos da Fenícia – Tiro, Ptolemaida, Damasco, Sidom, Trípoli, Paneas, Berito (Beirute), Palmira, Alassus, Emesa e Antarado participaram do Concílio de Niceia.viii


De acordo com essa declaração, Tiro e Sidom foram cidades tão importantes para o Cristianismo do IV Século, que chegaram até mesmo a conceder bispos para o importante Concílio de Niceia. Portanto, diante desses dados bíblicos e históricos, só podemos concluir que não somente a mensagem da salvação foi pregada como também diversos milagres foram operados nas regiões de Tiro e Sidom. Tais fatos explicam adequadamente o porquê da presença do Cristianismo nessas regiões séculos depois do período bíblico ter encerrado.


(3) O fato de Jesus ter escolhido a dedo justamente as cidades gentílicas de Tiro, Sidom e Sodoma, a fim de contrastá-las com as cidades judias de Corazim, Betsaida e Cafarnaum, não sugere o exercício da presciência da fé num hipotético contexto de conhecimento médio ou contingente. Antes, o emprego deliberado dessas cidades parece assinalar outra verdade, conforme ficará patenteado nos próximos dois itens.


(2) Mateus 11:20-24: Um Caso de Ironia


Pode-se definir “ironia”, em termos de figura de linguagem, como um “tipo de discurso em que uma pessoa diz uma coisa, mas pretende [dizer] outra”.ix Segundo Patzia e Petrotta, “o perigo da ironia é ela não ser notada” e, por conseguinte, “para ser capaz de encontrar ironia em um texto, o leitor deve ser capaz de confiar no que é dito e discernir o motivo pelo qual o que foi dito não é o que se pretende dizer”.x Após tais informações, uma pergunta surge: mas, será que Jesus teria empregado a ironia em sua censura dirigida às cidades impenitentes de Corazim, Betsaida e Cafarnaum? Jarvis e Johnson respondem a essa questão afirmativamente, explicando Mt 11:20-24 nesses termos:


Através de uma óbvia inversão e, talvez, tirando proveito de estereótipos culturais para sublinhar a ironia de seu ponto, Jesus afirma que as cidades gentílicas de Tiro e Sidom teriam sido mais responsáveis à sua missão e ministério do que Corazim, Betsaida e Cafarnaum haviam sido.xi


Dowel aprofunda ainda mais a questão, explicando a importância que a ironia exerce na narrativa mateana, e, mais precisamente, no contexto de Mt 11:20-24:


Ele [Jesus] repercute um comum, mas irônico tema do Evangelho, a ironia do gentio exibindo maior fé do que o judeu. [...] A ironia aqui, [...] serve para acentuar um ponto: os judeus, apesar de sua tradicional crença no Messias, estão rejeitando-o, enquanto os gentios, que não têm tal crença tradicional, estão aceitando-o.xii


Essas ponderações nos ajudam a elucidar o sentido da declaração irônica de Jesus em Mateus 11:20-24, a partir do tema do “gentio crente” versus “judeu incrédulo” que funciona como um leitmotiv ao longo de todo o Evangelho de Mateus. A tabela abaixo nos auxiliará a exemplificar este ponto:
O Tema do “Gentio Crente” versus “Judeu Incrédulo” no Evangelho de Mateus

O “gentio crente”
O “judeu incrédulo”

- A fé do centurião de Cafarnaum (Mt 8:5-9);

- A fé dos gentios (Mt 8:11);

- A fé de Tiro, Sidom e Sodoma (Mt 11:21,23);

- Os ninivitas crentes (Mt 12:41);

- A rainha do meio-dia (Mt 12:42);

- A fé da mulher cananeia (Mt 15:21-28);

- A fé do centurião romano (Mt 27:54).
- A incredulidade de Israel (Mt 8:10);

- A incredulidade dos judeus (Mt 8:12);

- A incredulidade de Corazim, Betsaida e Cafarnaum (Mt 11:20-21,23);

- A geração má e adúltera (Mt 12:38-40);

- A geração da época de Jesus (12:42);

- As ovelhas perdidas de Israel (Mt 15:24);

- A incredulidade dos sacerdotes, escribas, 
anciãos e fariseus (Mt 27:41-43).





Essa lista de contrastes entre a postura dos gentios e judeus com relação à pessoa de Cristo, nos permite avaliar melhor toda a questão. Assim, Jesus, em Mt 11:20-24, valendo-se da ironia, contrasta deliberadamente três cidades gentílicas, Tiro, Sidom e Sodoma, com três cidades galileanas e, portanto, judias, a saber, Corazim, Betsaida e Cafarnaum.xiii Através de tal contraste, Mateus não pretende dizer que Jesus, por meio de seu conhecimento médio, teria previsto a reação de fé de Tiro, Sidom e Sodoma, mas, ainda assim, não quis salvá-las. O que Jesus quis dizer, dando continuidade ao tema mateano do “gentio crente” versus “judeu incrédulo”, e, valendo-se de uma linguagem meramente hipotética, é que até mesmo os gentios mais ímpios – exemplificados por Tiro, Sidom e Sodoma – teriam reagido bem melhor do que os seus compatriotas judeus, caso estivessem no lugar deles e tivessem ouvido a sua mensagem e testemunhado os seus milagres. Como bem pontuou Fridrichsen, “era necessário que o exemplo de estrangeiros que estavam a encher Israel de vergonha, assumisse a forma hipotética”,xiv a fim de chocar os judeus, fazendo-os cair em si devido a enormidade de seu pecado.


Bem, mas o uso da ironia diante de uma situação tão grave – a incredulidade de três cidades judias – não poderia depor contra a autenticidade da reprimenda de Jesus, tornando, inclusive, a sua advertência ineficaz? Segundo König, não, uma vez que “os escritores bíblicos não tinham medo de prejudicar a seriedade de suas declarações ao recorrer à ironia, nem havia qualquer razão para ter medo, vendo que todo mundo sabia converter essas expressões irônicas no seu [significado] contrário”.xv


Por enquanto, a perspectiva interpretativa da ironia, ao que nos parece, retrata mais adequadamente o teor de Mateus 11:20-24 do que a teoria do conhecimento médio.


(3) Mateus 11:20-24: Um Caso de Hipérbole


Finalmente, o pronunciamento de Jesus dirigido às cidades impenitentes de Corazim, Betsaida e Cafarnaum também tem sido compreendido como um caso de linguagem hiperbólica. Segundo Zuck, “uma hipérbole é um exagero deliberado, em que se diz mais do que o significado literal, a fim de acrescentar ênfase”.xviEmbora a natureza exagerada da hipérbole contenha dentro de si as sementes da ironia, como observou Sharp,xvii confundindo-se às vezes com esta, optamos por tratar essas duas figuras de linguagem separadamente como duas entidades distintas, mas não necessariamente mutuamente excludentes.


Voltemos ao texto bíblico. De acordo com Craig, “a passagem em Mateus 11 é provavelmente uma hipérbole religiosa destinada apenas a sublinhar a intensidade da depravação das cidades nas quais Jesus pregou”.xviii Essa informação é deveras curiosa, especialmente por sair da pena de um teólogo molinista. Bird, por seu turno, chama a censura de Jesus direcionada às cidades judias de “observação hiperbólica”.xix Por fim, Davies e Alisson entendem que em Mt 11:20-24, “Jesus, com a hipérbole de um profeta, está exclamando que os judeus falharam em responder aos fenômenos que teriam persuadido até mesmo aos pagãos, – e, além do mais, mesmo aos pagãos notáveis”.xx


Diante de tais dados, podemos chegar a, pelo menos, duas conclusões:


(1) Jesus, ao comparar as cidades judias impenitentes de Corazim, Betsaida e Cafarnaum com três das piores cidades gentílicas, hipoteticamente “arrependidas”, somente menciona estas últimas a fim realçar a gravidade do pecado das primeiras, visto que “as cidades gentílicas de Tiro, Sidom e Sodoma [...] se tornaram símbolos bíblicos de maldade absoluta”.xxi Portanto, Jesus espera que a sua comparação propositalmente exagerada conscientize os seus compatriotas incrédulos, fazendo-os enxergar a enormidade de seu pecado e possibilitando-lhes, assim, o arrependimento.


(2) A pergunta retórica de Jesus dirigida a Cafarnaum, na expressão “E você, Cafarnaum, será elevada até ao céu? Não, você descerá até o Hades!” (Mt 11:23), emprega uma linguagem hiperbólica a fim de ecoar a queda do rei da Babilônia, descrita em Is 14:13-15. Tal linguagem deliberadamente exagerada segue o tom hiperbólico de toda a perícope bíblica em estudo.


Conclusão


Ao término de nosso artigo e, depois de termos apresentado as três principais interpretações dadas ao texto de Mt 11:20-24, podemos obter as seguintes conclusões.


(1) Embora reconheçamos o “conhecimento médio”, como um dos atributos incomunicáveis de Deus, todavia, não encontramos nenhuma boa razão para imaginarmos que Mateus 11:20-24 esteja se referindo a ele.


(2) O contexto imediato de Mateus 11:20-24 apresenta Jesus fazendo um convite amplo e irrestrito aos pecadores em geral, dizendo-lhes: “Vinde a mim todos os que estais cansados e oprimidos e eu vos aliviarei” (Mt 11:28). Ora, esse tipo de convite abrangente (a “todos” os cansados e oprimidos) seria inadequado se tivesse sido proferido por alguém que anteviu a fé de certas pessoas, mas, mesmo assim, deliberadamente não quis salvá-las, como supõe a hipótese do conhecimento médio. Em outras palavras, a suposta retenção seletiva da salvação às cidades de Tiro, Sidom e Sodoma não se coadunaria com a oferta de “descanso para as almas” (Mt 11:29) disponibilizada a “todos os cansados e oprimidos” (Mt 11:28). Assim, o Jesus que exibe um hipotético conhecimento médio em Mt 11:20-24 se parece muito pouco com o Jesus que, logo em seguida, oferece a “todos” o descanso para a alma (Mt 11:28-30).


(3) A passagem por nós estudada parece exibir uma linguagem figurada dupla, irônica-hiperbólica. Por conter ironia, tal linguagem pretende dizer sutilmente algo diferente do que foi dito; e, simultaneamente, por conter hipérbole, intenciona exagerar deliberadamente o relato bíblico, com o intuito de sublinhar um determinado ponto. Desse modo, três cidades gentílicas ímpias, emblemáticas do pecado e, portanto, bastante presentes no imaginário popular judaico (Tiro, Sidom e Sodoma) são empregadas como ilustrações pujantes da incredulidade de três cidades judias (Corazim, Betsaida e Cafarnaum).


(4) As três cidades gentílicas ímpias de Tiro, Sidom e Sodoma, bem como o seu hipotético e surpreendente “arrependimento”, foram imagens escolhidas a dedo por Jesus, a fim de confrontar e chocar a sua audiência judia incrédula. Tal contraste estabelecido entre gentios crentes e judeus incrédulos, como já visto, funciona como um fio condutor que atravessa boa parte do livro de Mateus. Portanto, ao empregar ilustrações tão vigorosas quanto aquelas presentes em Mt 11:20-24, Jesus estava querendo dizer aos seus compatriotas judeus: “nem mesmo as cidades gentílicas mais ímpias que vocês conhecem teriam se comportado tão incredulamente como vocês!”.


(5) Por fim, parece que a pretensão de demolir de vez a doutrina arminiana da eleição condicionada à fé prevista, terá que ser adiada, visto que Mt 11:20-24 não se presta a tal expediente. Se os calvinistas almejam desconstruir a doutrina bíblica da eleição condicional, eles terão que escolher outra passagem das Escrituras que lhes sirva claramente de apoio para esse fim.


i CARSON, D. A. God With Us: Themes From Matthew. Eugene, Wipf and Stock Publishers, 1995, p.66. O acréscimo entre colchetes é nosso.


ii FERREIRA, Franklin & MYATT, Alan. Teologia Sistemática: Uma Análise Histórica, Bíblica e Apologética para o Contexto Atual. São Paulo, Vida Nova, 2007, p.340. Carson também entende que Mt 11:20-24 apresenta um caso de “conhecimento médio”. (Cf. CARSON, D. A. God, the Bible and Spiritual Warfare: A Review Article. [Journal of the Evangelical Theological Society | 42/2]. Louisville, Evangelical Theological Society Press, 1999, p.261). Veja ainda a interpretação de Calvino sobre Mt 11:20-24: CALVIN, John. Commentary on Matthew, Mark, Luke. [Volume 2]. Grand Rapids, Christian Classics Ethereal Library, S/d., pp.21-24.


iii Idem, Ibidem, p.751.


iv GRANCONATO, Marcos. Fundamentos da Teologia do Novo Testamento. São Paulo, Mundo Cristão, 2014, p.136. O acréscimo entre colchetes é nosso.


v Idem, Ibidem, p.137. O acréscimo entre colchetes é nosso.


vi COMFORT, Philip Wesley. Encountering the Manuscripts: An Introduction to New Testament Paleography & Textual Criticism. Nashville, Broadman & Holman Publishers, 2005, p.44.


vii HENDRIKSEN, William. Mateus. (Volume 1). [Trad. Valter Graciano Martins]. São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2001, p.702, cf. nota.


viii HINSON, E. Glenn. The Church Triumphant: A History of Christianity Up To 1300. Macon, Mercer University Press, 1995, p.79.


ix HOLMGREN, Frederick C. The Old Testament and the Significance of Jesus: Embracing Change – Mantaining Christian Identity. Grand Rapids, William B. Eerdmans Publishing Company, 1999, p.90. O acréscimo entre colchetes é nosso.


x PATZIA, Arthur G. e PETROTTA, Anthony J. Dicionário de Estudos Bíblicos. [Trad. Pedro Wazen de Freitas]. São Paulo, Editora Vida, 2003, p.84.


xi JARVIS, Cynthia A. & JOHNSON, E. Elizabeth. [Eds.]. Feasting on the Gospels: Matthew, Volume 1, Chapters 1-13. [A Feasting on the Word Commentary]. Louisville, Westminster John Knox Press, 2013, p.293.


xii DOWELL, Bob. Understanding the Bible: Head and Heart: Part Two: Matthew Through Acts. Maitland, Xulon Press, 2011, p.210. O acréscimo entre colchetes é nosso.


xiii Hendriksen interpreta a frase “E você, Cafarnaum, será elevada até ao céu?” (Mt 11:23) como uma ironia. Segundo ele, “trata-se de ironia, pois Cafarnaum espera exatamente ser assim exaltada”. (Cf.HENDRIKSEN, William. Mateus. (Volume 1). [Trad. Valter Graciano Martins]. São Paulo, Editora Cultura Cristã, 2001, p.703).


xiv FRIDRICHSEN, Anton. The Problem of Miracle in Primitive Christianity. Minneapolis, Augsburg Publishing House, 1972, p.75.


xv KÖNIG, Ed. Style of Scripture. In: HASTINGS, James. [Ed.]. A Dictionary of the Bible. [Volume V | Supplement Part One: Articles]. Honolulu, University Press of the Pacific, 2004, p.164. O acréscimo entre colchetes é nosso.


xvi ZUCK, Roy B. Basic Bible Interpretation: A Practical Guide to Discovering Biblical Truth. Colorado Springs, David C. Cook, 1991, p.154.


xvii SHARP, Carolyn J. Irony and Meaning in the Hebrew Bible. Bloomington and Indianapolis, Indiana University Press, 2009, p.257, nota 58.


xviii CRAIG, William Lane. The Only Wise God: The Compatibility of Divine Foreknowledge and Human Freedom. Eugene, Wipf and Stock Publishers, 2000, p.137, nota 1.


xix BIRD, Michael F. Jesus and the Origins of the Gentile Mission. [Library of New Testament Studies]. London and New York, T&T Clark International, 1988, p.63.


xx DAVIES, W. D. & ALISSON, D. C. Matthew 8-18. (Volume II). [International Critical Commentary]. London and New York, T&T Clark International, 1991, p.267.


xxi BORING, M. Eugene & CRADDOCK, Fred B. The People’s New Testament Commentary. Louisville, Westminster John Knox Press, 2009, p.53.